Mote
Nestes dias, vimos uma iniciativa da Cia de Foto que abriu à comunidade de fotógrafos o convite para ocupar duas páginas da Revista da Folha com imagens de São Paulo, na edição que sairá na véspera do aniversário da cidade. Desde algum tempo, acompanho a produção da Cia e o blog, mas não tinha idéia do poder agregador dessa turma: com a provocação que fizeram, reuniram mais de 200 autores, entre fotógrafos importantes, outros emergentes, alguns esporádicos (como eu) e, claro, outros coletivos. A idéia se espalhou e ganhou corpo com o título de “São Paulo de Muitos”.
A rede como evento
Por falta de tempo e desenvoltura, freqüento menos do que deveria os blogs e as redes sociais. Mas temos que admitir a força desses meios. A internet já me salvou da solidão da pesquisa outras vezes. Independentemente da quantidade de leitores que conquistamos, o mais incrível é descobrir e fazer contato com um tanto de gente boa que tem produzido e pensado a fotografia. Foi assim que encontrei alguns blogs, foi assim que deu vontade de ter um. E aqui estamos, eu e o Rubens, também graças ao incentivo de outros blogueiros que encontramos no momento certo: Pio Figueiroa, Livia Aquino, Georgia Quintas…
O que há de mais rico nessas experiências não é o conteúdo de cada blog, mas alguma coisa que acontece entre eles. Às vezes, eu sinto que as redes proporcionam uma interação e uma imersão semelhante àquela que só vemos nos grandes eventos, mas ainda mais potencializada. Digo isso porque, pela rede, tenho esbarrado em muita gente legal, com conversas informais, mas muito comprometidas, algo que eu só vivi nas antigas Semanas Nacionais de Fotografia. Infelizmente, não tenho frequentado, mas não esqueço da importância de eventos como o Paraty em Foco que, além de cruzar alguns blogs, é um desses grandes espaços em que o pessoal da fotografia se cruza em carne e osso.
Também como nos grandes eventos, ao lado daqueles que aproveitam esses tantos pequenos encontros, há os que sabem criar condições para que eles aconteçam. É esse o papel que a Cia tem feito muito bem nas redes, mandando recados, dando dicas, estimulando, provocando, convidando um blogueiro a ver o post do outro. No final das contas, é um trabalho de ação cultural, que une um contingente de pessoas que só agora percebo.
O que a Cia faz nas redes é uma espécie de metáfora de seu próprio processo de criação, em que a interação é mais forte do que os gestos individuais, em que o todo é mais que a soma das partes. Ou seja, o coletivo já é em si uma rede, espécie de microcosmo análogo ao cosmo da internet, que por sua vez é análogo ao macrocosmo que chamamos de cultura.
Autoria
Na prática, toda criação tem algo de coletivo. Quando um pintor usa a perspectiva, quando um fotógrafo regula sua câmera, quando um editor de imagens seleciona um efeito no photoshop, todos estão recorrendo a um saber acumulado, transformado em programa e colocado à disposição dos criadores. Desse modo, há um universo de anônimos que são sempre co-autoras das nossas imagens de modo que, quando expressamos algo, a cultura fala junto conosco.
A noção de autoria, sobretudo ligada a um indivíduo, não existiu sempre na história. Existe com mais clareza há uns 500 anos. Antes, os contornos desse sujeito não eram assim tão claros. Por exemplo, não se sabe ao certo se Homero escreveu a Ilíada e a Odisséia, se foi um cantador erudito que organizou narrativas que circulavam pela Grécia, ou se é uma espécie de personagem síntese dos próprios mitos que são narrados por sua suposta voz. Outro exemplo: um sacerdote medieval não pensava como sendo suas as decisões sobre o ícone que pintava, ele se supunha instrumento de algo maior do que ele, por isso, não havia sentido em assinar a obra. Foi a modernidade (no sentido amplo, algo que começa a se organizar lá pelos séculos XVI, XVII) que construiu a noção de indivíduo, alguém que se sente autônomo com relação a Deus, à natureza e à coletividade. É aí que surgem os gênios, com seus estilos peculiares, suas personalidades marcantes, com suas assinaturas valiosas.
Em 1969, Foucault realizou uma conferência chamada “O que é um autor?”, lançando sobre a literatura questões que podemos conduzir a outras artes. Para ele, “autor” é uma função, ou seja, algo que não existe em si, mas para algumas finalidades dadas historicamente, dentre elas, garantir que a obra opere sob a condição de propriedade privada. Uma outra função é permitir checar um pensamento diante de um nome que merece ou não nossa confiança, em outras palavras, que tem ou não autoridade. Como não encontramos alternativas satisfatórias ao capitalismo, ok, a demarcação dessa propriedade privada (o direito autoral) permanece indispensável, é nosso meio de sobrevivência. Mas não deixa de ser perturbador – uma pequena revolução – substituir o “nome próprio” que nos situa diante de uma obra pelo nome coletivo.
A afirmação da “autoria”, assim como do “sujeito”, é uma aquisição da qual não abrimos mão. Mas ela corre sempre o risco de tornar a arte uma manifestação egocêntrica, e cria a ilusão de que algumas conquistas históricas são produto de ações de indivíduos. Entre a massa alienada que obedece a estereótipos e o indivíduo que acredita criar tudo a partir do zero e de si mesmo, a idéia de “rede” parece trazer uma medida mais adequada à realidade de uma experiência cultural. No que se refere particularmente à arte, a idéia de “coletivo” tem o mesmo valor: permite construir e manter uma identidade autoral forte sem cair no culto ao indivíduo, a um nome.
Criação e inteligência coletiva
O filósofo francês Pierre Lévy observa que as redes constituem um aparato de percepção, memória e aprendizado exterior aos indivíduos. Como experiência descentralizada, essa nova cognição resulta no que chamou de “inteligência coletiva”, maior em amplitude e alcance que a inteligência individual ou mesmo a acadêmica; uma inteligência que se desenvolve de modo autônomo com relação aos projetos individuais ou institucionais. É uma idéia importante, mesmo que eu não seja tão otimista quanto Lévy: ao lado dessa inteligência existe também a possibilidade de desenvolvimento autônomo de algumas burrices coletivas, sobretudo quando dissolvemos todas as referências de qualidade em nome de um “democratismo”.
Acho mais produtivo quando aliamos a liberdade de expressão nas redes a projetos que assumem a responsabilidade de propor parâmetros para as ações. Ou seja, também nesse sentido, o ideal me parece algo entre a vaidade individual e a alienação das massas. Coletivo (seja um grupo de artistas, de pesquisadores, de blogs) é, porque não, um nome que podemos dar a essa boa medida. No caso específico da Cia de Foto, enquanto buscam referências para seus próprios trabalhos, estimulam e reverberam aquilo que julgam ter qualidade, conectam e ampliam o sentido de produções isoladas, e colocam lado a lado nomes com diferentes pesos de autoridade. Em outras palavras, enquanto criam, fazem o que poderiamos chamar de política cultural (se o termo não estivesse tão desgastado), talvez a mais adequada aos nossos tempos e aos potenciais das novas tecnologias.
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