A fotografia e o diagnóstico do espírito

[26.out.2009]

O caderno Mais da Folha de S. Paulo trouxe neste domingo um belo artigo de Moacyr Scliar, “A cara do mal” , sobre o médico Cesare Lombroso, professor da Universidade de Turim cujo centenário de morte foi comemorado agora em outubro.  Lombroso dedicou sua vida à hipótese de que certos aspectos do comportamento criminoso são congênitos. Ou seja, em alguma medida, bandido nasce bandido.

O texto está disponível apenas para assinantes do UOL na edição on-line da Folha: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2510200907.htm.

Cesare Lombroso, publicado em seu livro O homem criminal, de 1876.

Cesare Lombroso, publicado em seu livro O homem criminal, de 1876.

Apesar das ótimas referências que traz, Scliar não menciona um aspecto que nos interessa. Lombroso, como bom positivista, acreditava que nenhuma verdade escapava ao olhar atento e munido de métodos rigorosos, mesmo aquelas que dizem respeito ao espírito humano. Esse olhar e esse método seriam garantidos por uma tecnologia de ponta do século XIX: a fotografia.

É na comparação entre milhares de fotos de criminosos e não criminosos que ele tentará encontrar a fisionomia típica do criminoso, conforme o tipo específico de desvio que manifestasse: o ladrão, o homicida, o estuprador, mas também, o anarquista, o homossexual. Ou seja, bandido nasce bandido e tem cara de bandido.

Imaginem só que maravilha seria a possibilidade de uma atuação “profilática” da polícia: você poderia ser preso por ter uma sobrancelha, um nariz, talvez uma orelha, digamos, com formas delinqüentes. Se você não fez nada de errado, ainda bem, seu rosto prova que poderia muito bem ter feito! Na prática, não era isso exatamente que Lombroso defendia mas, como lembra Scliar, ele não deixou de inspirar teorias que foram usadas para justificar as perseguições naziistas, que visavam uma espécie de assepsia social dessa mesma ordem.

Homossexual passivo, c. 1900. Atribuído à Lombroso.

Homossexual passivo, c. 1900. Atribuído a Lombroso.

O rigor metodológico de Lombroso resulta em registros bastante padronizados que, suponho, tenham sido importantes para definir o que é hoje nossa “foto de identidade”. Mas isso pode não tê-lo impedido de confundir a natureza do ser-humano com uma teatralidade que é inerente ao corpo, sobretudo ao corpo exposto à câmera. Neste último exemplo, não se trata de revelar nada, mas de fazer a imagem coincidir forçosamente com um juízo já formado.

Lombroso não foi o primeiro nem o último a usar a imagem para identificar patologias e comportamentos. Mas, hoje, a ciência já superou a linguagem mimética da fotografia e tem métodos muito mais sutis para identificar os padrões que definem nosso comportamento, como o mapeamento genético e as análises bioquímicas. E assim, vez ou outra, ela continua tentando entender o que “causa” o comportamento do criminoso, do subversivo, do esquizofrênico, do homossexual, quem sabe, em busca de uma cura…

Quem se interessar por saber mais sobre o uso da fotografia por Lombroso e outros cientistas, temos algumas boas fontes em português:

  • “A fotografia e seus fantasmas”, ensaio que integra O ato fotográfico, de Philippe Dubois (Papirus, 1996).
  • “Entre a Arte, a Ciência e o Delírio : a fotografia médica francesa na Segunda metade do século XIX”, artigo de Etienne Samain, um pouco difícil de encontrar (publicado no Boletim do Centro de Memória da Unicamp, vol 5, n°10, 1993).
  • “Identidade / Identificação” primeiro capítulo do livro Identidades Virtuais. Uma leitura do retrato fotográfico, de Annateresa Fabris (UFMG,2004).

Em tempo: o Blog do Cia de Foto publicou referências muito interessantes que complementam este post e o comentário deixado por eles aqui: http://ciadefoto.com.br/blog/?p=1559 . Vale a pena ver.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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