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ARTE E ACASO: INTRODUÇÃO AO PROBLEMA
Ronaldo Entler, 1996
Na criação artística, as metas se transformam ao longo do trabalho, pois o compromisso
maior que o artista assume é com necessidades que são interiores ao processo criativo.
Ou seja, a obra responde à sua própria coerência. O pintor diante de uma tela em
branco, tem uma infinidade de caminhos a seguir e, muitas vezes, sua intenção vai sendo
moldada num durante, seguindo as sugestões que advém da própria obra. É claro
que essa indeterminação, por mais que estabeleça uma constelação de possibilidades
não imaginadas num projeto, esbarra em fronteiras delimitadas pela técnica e pela
experiência do artista. Como diz Décio Pignatari: "um sonetista intui sonetos" 1. Isto é, há referenciais que garantem qualidades
genéricas do produto, mas há também uma margem de liberdade sem a qual não poderia
haver criação, apenas repetição. A produção artística se realiza num jogo entre
contingências e necessidades, as primeiras conduzindo o processo à diversidade, as
segundas, à eficiência.
Algumas
transformações históricas da arte podem ser pensadas pelo viés da tensão entre uma
parte e outra.
Os valores implícitos no conceito
clássico de arte são determinados exatamente pela habilidade do artista e pela
eficiência da execução da obra. Platão (ainda que considerasse a arte muito distante
da perfeição do mundo das idéias) referia-se ao fazer com arte como um sinônimo
de fazer corretamente, sem equívocos. Aristóteles via na arte uma das qualidades
essenciais do homem: o poder de exercer sua vontade numa ação criadora, situação
oposta às determinações do acaso (tique). O controle é o que define esta
concepção de arte que, de alguma maneira, ainda permeia nosso senso comum. A dificuldade
de execução é sempre uma forte referência para julgamentos cotidianos de uma qualidade
artística. Isso se manifesta em afirmações recorrentes como: cozinhar é uma arte ou consertar um carro é uma arte. Em sentido inverso, uma obra que não evidencie
a destreza do artista tem seu valor recusado: isso eu também faço! O acaso não
se submete à habilidade e, reciprocamente, a habilidade é exatamente a arma que se pode
ter contra o acaso, para garantir o alcance de um objetivo qualquer. Manifesta-se aqui um
sentido negativo que hoje está contido na idéia de acidente e, aparentemente,
arte está para criação, como acaso está para a destruição.
Foi a partir do século XIX que alguns
fenômenos, tanto no campo conceitual quanto no instrumental, vieram flexibilizar o papel
do controle e da dificuldade da execução na definição do valor estético.
O primeiro fenômeno é a entrada da arte
na era das produções técnicas e tecnológicas, primeiro com a gravura mas, de forma
mais marcante com fotografia, e depois com o cinema, o vídeo e o computador. Nesses
casos, a utilização de aparatos possibilita a substituição da mão do homem por
atividades programadas na construção da obra. Não há dúvida de que isso não foi tão
facilmente digerido, nem pelos artistas tradicionais que reagiram severamente contra a
fotografia, nem pelos fotógrafos que faziam questão de demonstrar a exigência de
habilidades incomuns em várias das etapas do processo. Os que levaram mais a sério essa
preocupação, paradoxalmente, pintavam suas fotos, garantindo a elas a ação artesanal
que lhes parecia necessária à obtenção de um status de obra de arte.
É inegável o fato de que, se apertamos o
botão disparador de uma câmera num momento qualquer, temos uma probabilidade grande de
chegar a uma imagem. O mesmo vale para qualquer outro meio técnico. E se não resistirmos
às facilidades que ele nos oferece, entenderemos melhor como os fotógrafos amadores da
virada do século apontaram para a arte outros caminhos que não o das rebuscadas
fotografias dos estúdios profissionais. Ou, ainda, perceberemos o valor de trabalhos como
o do francês Jacques Henri Lartigue (1894-1986), que inicia sua atividade de fotógrafo
aos sete anos de idade, ou do esloveno Evgen Bavcar (1946-), que começa a fotografar aos
dezenove anos de idade, cerca de oito anos depois de ter ficado completamente cego.
O segundo fenômeno a que nos referimos, e
que obviamente não está desvinculado do primeiro, foi o profundo questionamento operado
no âmbito da própria produção artística, que culminou nos movimentos da arte moderna.
Para alguns deles, o acaso foi uma forma de afrontamento aos conceitos e valores
acadêmicos da arte. Observamos isso já nas pinceladas rápidas do Impressionismo, nos
poemas sorteados do dadaísmo, nos ready-mades de Duchamp (1887-1968), na escrita
automática dos poetas surrealistas, nos movimentos caóticos dos expressionistas
abstratos etc.
Como exemplos mais recentes vale ainda
lembrar da música (e das performances) de John Cage (1912-1992), que usava objetos
variados e sucatas como instrumentos; das interferências e ruídos inseridos na imagem do
vídeo por Nam June Paik (1932-), das experiências combinatórias da poesia concreta
brasileira. Mais genericamente, há também a questão (muito em voga) da interatividade,
onde o espectador é quem define a configuração sempre provisória da obra no percurso
de sua leitura. Certamente, o computador vem a desdobrar e agilizar as possibilidades de
recombinação e de interatividade na arte, mas vale notar que essas propostas não surgem
apenas a partir das novas tecnologias. Por exemplo, elas já estavam presentes no célebre
poema Un coup de dés jamais n'abolira le hasard (Um lance de dados jamais abolirá
o acaso), de Mallarmé (1842-1898). Nesse poema, a página é explorada de tal forma que
convida o leitor a estabelecer seus próprios percursos, de maneira não linear.
É um tanto mais fácil pensar o acaso em
situações onde ele é provocado e esperado pelo artista, como nos exemplos citados. Uma
outra situação, igualmente interessante mas um tanto difícil de localizar, é a
incorporação de um acidente na produção da obra. Imaginemos que, involuntariamente, um
pintor derrube tinta em sua tela e resolva incorporar ao trabalho o efeito provocado, ou
então que ele descubra um novo caminho, sugerido pelo próprio acidente. Coisas desse
tipo podem ter ocorrido um número significativo de vezes na história de nossa arte, mas
o artista tem um bom motivo para não fazer maiores alardes sobre o assunto: qual é o
valor expressivo de um acidente, se a priori ele não responde à nenhuma
determinação do artista? Vaidades artísticas à parte, acreditamos que não haja nada
de absurdo na possibilidade de um sujeito reconhecer-se em alguma coisa que está fora
dele, transferindo ou moldando sua expressão no próprio ato da descoberta de um
significado acidental (esse seria talvez o esboço de nossa resposta à pergunta que está
na abertura deste site). Umberto Eco fala em "antropomorfização da
natureza", o reconhecimento de um aspecto humano naquilo que não foi produzido pelo
homem, e conclui: "A essência da operação formadora não reside tanto na
execução, mas na escolha que se fez. (...) a exploração do acaso tem uma aparência de
ato formador autêntico" 2. A psicanálise descreve algo semelhante, no que se refere ao
inconsciente: seus conteúdos podem ganhar forma através do fenômeno da projeção, que
gera uma identificação com o elemento externo, e tornando-o representativo do sujeito.
A ARTE NÃO É MAIS A
MESMA...
O mais importante não é buscar a possibilidade de uma expressividade do acaso, e fazê-lo
caber forçosamente nos valores tradicionais da arte, mas sim perceber que a arte se
transformou, e que talvez já não se pretenda tão elevada quanto queriam os românticos.
O século XX certamente constitui um momento complexo para as reflexões da filosofia
estética, exatamente porque a criação se torna o espaço e o momento para próprio
questionamento da arte. Com isso, a obra assume constantemente o compromisso de reinventar
o significado da arte, e a apresentação da pesquisa poética torna-se mais
importante que a poesia. Nas palavras de Umberto Eco, ocorre um
"desvanecimento do valor estético concreto face ao valor cultural abstrato, (...) o
prevalecimento da poética sobre a obra, do desenho racional sobre a coisa desenhada" 3.
Se esse é um momento que, aparentemente, comporta sem conflitos as
experiências com o acaso. Ele representa também a configuração de um fenômeno que
alguns teóricos entendem como uma possível morte da arte. Eco fala da
substituição de um prazer emotivo por um prazer intelectual e, nesse processo de
racionalização, ele aponta a possibilidade de a explicação da obra vir a ser mais
interessante do que ela própria. Esse seria um indicador do "crepúsculo da
arte". Mas Eco recusa a idéia de morte como fim histórico, preferindo
pensá-la dialeticamente como transformação, transcendência. De fato, Eco tenta
demonstrar a sobrevivência de um valor estético nessa arte, concluindo que a obra, mesmo
em sua fruição intelectual, ainda pode apresentar-se como um organismo formado,
percebido em seu todo, bem acabado.
O acaso leva ainda a uma outra forma de
pensar a morte da arte. Na medida em que se ampliam os espaços para a ausência de
intencionalidade, não estaríamos nos aproximando da aceitação de uma arte totalmente
desprovida de uma intenção artística? Falamos da possibilidade de localizarmos um
fenômeno estético num objeto qualquer que não tenha sido produzido por um artista, ou
para uma finalidade artística. Por exemplo, quando observamos imagens matemáticas ou
cientificas como os fractais, fotografias de satélites, diagramas de chips de computador
entrando nas galerias de arte. Outro exemplo: certa vez, Júlio Plaza 4 lançou uma provocação, propondo exatamente
a contemplação de quadros animados e abstratos, formados por interferências que
decompunham a imagem de um canal de TV em pequenos quadrados coloridos e cintilantes.
Daqui pode decorrer um enfraquecimento do impacto da arte pela perda de sua
especificidade, por sua banalização, e por sua própria diluição no mundo dos objetos
comuns: onde tudo pode ser arte, nada é uma arte absoluta. Esta é uma hipótese um tanto
radical, e não cabe ainda negá-la ou afirmá-la.
Concretamente, e por um lado, notamos que
muitas das experiências contemporâneas já não almejam uma obra ideal, definitiva. Seu
apelo a uma fruição racional, à compreensão de um jogo cujas regras nem sempre estão
dadas junto à obra, quando não leva à sua recusa, não obtém o mesmo impacto da
fruição emotiva de antes. Como já nos sugeria Eco, quando a obra é compreendida, o que
fica é sobretudo o seu modelo, seu modo de funcionamento, e não ela própria. Às vezes,
a marca autoral já não é tão reivindicada pelos artistas, ou ainda, a obra já não
pretende estar acabada, ou é absolutamente efêmera.
Por outro lado, cada vez mais outras
disciplinas tangenciam a arte e expõem seus produtos a uma apreciação estética. É
comum encontrarmos um texto sobre ciências exatas falando sobre "a beleza de uma
expressão matemática". Como diz Luiz Carlos de Menezes:
a física do começo do século para
cá é uma física das grandes harmonias, do pensar o conjunto, a harmonia do conjunto, e,
portanto, uma física muito mais oriental, fundada na idéia de estética e de harmonia do
que na idéia de intervenção e de causalidade 5.
Aparentemente, rompe-se com a fronteira que
separa a arte da não-arte, como se se rompesse a barragem de uma represa, aquele elemento
que, estabelecendo nesse sistema dois níveis distintos, garantia seu potencial
energético. Retomando um conceito de Hegel, que parece ter sido o primeiro a falar numa
morte da arte, Artur Danto lança uma questão: "o mundo da arte parece ter perdido
atualmente toda direção histórica, e cabe perguntar se se trata de um fenômeno
temporal e se a arte retomará o caminho da história, ou se esta condição
desestruturada é o seu futuro: uma espécie de entropia cultural" 6. Nossa metáfora da represa traz exatamente a
imagem que muitas vezes é usada para descrever o processo da morte entrópica do
universo.
Tudo isso parece delimitar um quadro
extremamente pejorativo mas, apesar disso, representa um momento rico de autocrítica, de
ampliação e ruptura de fronteiras, um processo sem o qual não poderíamos compreender a
existência de gênios como Marcel Duchamp (1887-1968), Joseph Beuys (1921-1986), John
Cage (1912-1992), Andy Warhol (1928-1987), Jeff Koons (1955-), entre tantos outros. Como
já sugeria Eco, uma morte necessária à transcendência da arte e, talvez, à
continuidade de sua existência.
Notas:
1. "Acaso, Arbitrário e Tiros",
in Teoria da Poesia Concreta: textos cíticos e manifestos, 1950 - 1960. São
Paulo, Brasiliense, 1987. p. 151. [voltar]
2. "Le Hasard", in Photographie.
Cahier de l'arc. Paris, Duponchelle, 1990. p.74. [voltar]
3. "Duas hipóteses sobre a morte da
arte", in A Definição da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 1981. p. 124. [voltar]
4. Júlio Plaza, artista multimídia,
Professor do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP e do Departamento de Multimeios
da Unicamp, foi também orientador da pesquisa de doutorado que resultou neste site. [voltar]
5. O Horizonte Imprevisto,
resumo do debate Acaso, da série Diálogos Impertinentes, promovido pelo Jornal Folha de
São Paulo e pela PUC-SP. in: Folha de S. Paulo, caderno Mais, 9/7/95. p.13. [voltar]
6. "El final del arte", in: El
Paseante, n. 23-25. Madri, Siruela, 1995. p. 33. [voltar]
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